Infinitas possibilidades perdidas
Faz parte da essência de um
publicitário brincar com as palavras, imagens e sons. Ao redor deles é
que esse profissional vai desenvolver a sua criatividade com o objetivo
de vender um produto, serviço ou ideia.
Os melhores publicitários
são aqueles que manipulam bem os seus recursos e, principalmente, como
diria Ogilvy, aquele que atinge o objetivo de quem o contratou.
O que não significa que
todos trabalhem assim. Como em qualquer profissão existe gente com e sem
competência. Um ex-chefe meu odiava o que ele chamava de síndrome de
criatividade de alguns publicitários, para quem era mais importante a
“sacada genial” (o genial fica por conta vaidade desses profissionais)
do que aquilo que eles estavam anunciando.
A nova campanha do FIAT Toro me lembrou muito disso.
A sacada “genial” dos
números que geram infinitas possibilidades sendo usada como metáfora de
um carro que, segundo a propaganda, também seria detentor dessa
infinitude, derrapou na lama de alguma das estradas de terra por onde
ele passa no filme.
Sem perder tempo lembrando
que um piano pode ter mais de 88 teclas (eles poderiam se ater ao
dodecafonismo dos instrumentos temperados que teriam sido mais felizes),
ou que muitos alfabetos superam
de longe o nosso limitado a 26 letras, o que me chamou a atenção foi
excluir das possibilidades infinitas as pessoas que tem um número de
cromossomos diferente de 46.
Pessoas com síndrome de
Turner podem ter um cromossomo a menos. Pessoas com síndromes de Down,
Patau, Warkany, triplo X e Klinefelter, tem um cromossomo a mais.
Algumas síndromes raras podem provocar a ocorrência de tetra ou
pentassomias e, nesses casos, serão pessoas com 48 ou 49 cromossomos.
E não são poucas, estamos
falando de alguns milhões de pessoas ao redor do mundo, só no Brasil,
onde a propaganda está sendo veiculada, a estimativa é de mais de meio
milhão de pessoas (e suas famílias)
Pessoas que também possuem
infinitas possibilidades de vida, de potencial e de sucesso. Se alguém
quiser brincar de análise combinatória pode calcular que quem tem
cromossomos a mais tem um número bem maior de possibilidades, diga-se de
passagem.
Fiquemos apenas nas três
possibilidades do que originou essa mancada (e sim, foi uma mancada,
basta ler os comentários do vídeo no youtube para perceber que
desagradou muita gente):
A primeira é a desinformação.
Quem criou e quem aprovou a campanha (criação, planejamento,
atendimento e o próprio cliente) não sabe nada a respeito das variações
cromossômicas.
E se não sabem nada, antes
de usar essa referência no texto, deveriam ter feito a lição de casa e
estudado melhor o que estavam colocando no papel. Mas, e sempre há um
mas, para que alguém que tem “sacadas geniais” precisa estudar algo?
Gênios não precisam de pesquisa.
A segunda possibilidade é a do esquecimento.
Alguém falou algo a respeito, mas como o redator ficou trabalhando
durante toda a madrugada na campanha que o atendimento tinha de
apresentar as 9 da manhã do dia seguinte para ser produzida no mesmo dia
e veiculada na mesma noite, ninguém checou o material e esse “detalhe”
passou em branco. As velhas e péssimas desculpas do meio.
A terceira possibilidade é mais assustadora, mas não pode ser descartada, ou seja, agência e cliente sabiam, lembraram, mas deliberadamente excluíram
da mensagem. Afinal, a propaganda precisa passar uma imagem de gente
feliz em situações perfeitas para tornar o produto um objeto de desejo.
Associar o produto a essa gente esquisita que tem cromossomos a mais ou a
menos não vai fazer bem para a marca.
Nesse caso, a situação seria
de clara discriminação e preconceito e precisaria de um tratamento de
choque. O único problema é que não seria possível provar isso somente
pela veiculação do filme.
Por outro lado, a marcar
perdeu a grande possibilidade de associar seu nome a defesa da
diversidade. Criou um público de inimigos e ainda vai gastar dinheiro
vindo à mídia para se desculpar pela gafe.
Nesse momento, fica apenas o nosso repúdio.
“Sua função é vender, não deixe que nada te distraia do único propósito da publicidade”. (David Ogilvy)
O alfabeto russo tem 33 letras. Os dicionários chineses indicam a
existência de 47 a 85 mil diferentes sinogramas, na escrita japonesa
existem mais de 6 mil kanji
Descrição de imagem:
uma das salas da instalação "Além do infinito" de Serge Salat, montada
sobre formas, cores e espelhos que dão a sensação de infinidade. No
centro da instalação uma pessoa é reproduzida em infinitas imagens
espelhadas.
Por: Fábio Adiron
Publicado originalmente em http://xiitadainclusao.blogspot.com.br/2016/03/infinitas-possibilidades-perdidas.html
Foto: Reprodução
Comentários
Postar um comentário